Por Fabio Souza de Carvalho
“A ciência responde à necessidade que temos de compreender quem somos, as nossas origens e o nosso destino, abordando questões tão antigas quanto à própria humanidade, questões que vêm inspirando o pensamento dos artistas, filósofos, poetas e santos desde os primórdios da civilização. Precisamos saber quem somos; precisamos saber onde estamos e como chegamos aqui. A ciência ilumina nossa busca por sentido, expressando nossa humanidade mais profunda. Queremos luz, sempre mais luz”[1].
“A ciência é o cobertor com que cobrimos os pés à noite, a luz que ligamos no fim do corredor, o mentor paciente que nos lembra do que somos capazes quando trabalhamos juntos”[2].
As palavras acima, do escritor Marcelo Gleiser, físico, astrônomo e professor da Faculdade de Dartmouth, Estados Unidos, nos dão uma rápida ideia acerca das paixões que movem a ciência. Em uma de suas faces, encontramos uma indescritível admiração (“porque não admiramos senão o que nos parece raro e extraordinário”[3]), um notável fascínio pelo mundo e por seu grande oceano de mistérios diante da pequenina ilha de conhecimento que nos atende os reclamos.
Na outra, encontramos os efeitos práticos do progresso que hoje arranha os céus com seus altíssimos prédios, sangra os mares com os seus sofisticados navios, cruza os ares com aviões supersônicos, reduz as distâncias com a transferência de trilhões de bits por segundo, imuniza a humanidade contra pandemias cruéis.
A esteira seguida por Kardec não foi diferente. Diante da admirável dança das mesas que respondiam a perguntas inteligentes, conduziram-se, os homens sérios, a graves estudos que não só nos revelou um mundo novo, até então amortalhado em mitos cheios de assessórios sem fundamentos, como nos ofereceu segurança para o intercâmbio com essa nova dimensão, trazendo-nos sólidos fundamentos para aceleração de nosso progresso moral.
“O Livro dos Médiuns” é a mais importante obra já escrita sobre o Espiritismo experimental. Fruto de um rigoroso programa de pesquisa científica, revela aos homens o “ensino especial dos Espíritos sobre a teoria de todos os gêneros de manifestações, os meios de comunicação com o mundo invisível, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os tropeços que se podem encontrar na prática do Espiritismo, constituindo o seguimento de O Livro dos Espíritos”[4].
O não reconhecimento do caráter científico da obra por grande parte da comunidade científica deve-se muita à crença de que o conhecimento a respeito da alma não pode ser adquirido por meio da experiência, mormente por se acreditar que ele transcende ao mundo sensível. Em “Crítica da Razão Pura”, publicada pela primeira vez em 1781, Kant, o famoso filósofo prussiano, é categórico neste sentido[5]:
“(…) certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem o círculo de nossos juízos além de seus limites.
Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão (…).
Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões denomina-se metafísica”. (grifo nosso)
Allan Kardec, entretanto, ao se deparar com os fenômenos que se multiplicavam pela Europa e pelo mundo, constatou que os Espíritos são reais e, desta forma, podem ser investigados cientificamente, como bem pontua em sua obra “A Gênese”[6]:
“As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, quando também se aplica às coisas metafísicas” (grifo nosso)
Diferentemente das demais ciências, Kardec não inicia suas investigações por meio de formulação de hipóteses que tentassem elucidar os fenômenos mediúnicos, mas a partir da explicação dos próprios Espíritos, como bem esclareceu na introdução de “O Livro dos Espíritos”[7]:
“É que ninguém imaginou os Espíritos como meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Muitas vezes, tratando-se das ciências exatas, formulam-se hipóteses para dar-se uma base ao raciocínio. Não é aqui o caso.” (grifo nosso)
Por essa razão, após cautelosa classificação dos Espíritos por suas características intelecto-morais, desenvolveu, com o cuidado que lhe era peculiar, critérios de validação da verdade, cujo prelúdio não poderia ser outro senão o da razão[8]:
“O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos”. (grifo nosso)
Entretanto, sendo o Espiritismo também uma ciência, não poderia desconsiderar a experimentação que pudesse validar o pensamento racional, como esclarece em “A Gênese”[9], derivando-se daquela os naturais processos de indução e dedução científicas:
“Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, isto é, aplicando o método experimental. Quando fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas, o Espiritismo os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os preside; depois, lhes deduz as consequências e busca as aplicações úteis.” (grifo nosso)
Ademais, os ensinos dos Espíritos contidos na codificação espírita, como elucida na obra “O Evangelho segundo o Espiritismo”[10], passaram por exaustivo controle de concordância por meio de comunicações espontâneas cujos médiuns, via de regra, não se conheciam:
“Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.” (grifo nosso)
Essa fortaleza epistemológica conferiu ao Espiritismo alicerces inabaláveis. Livre do espírito de sistemas, a teoria espírita nunca fugiu à falseabilidade apresentada por Karl Popper à filosofia da ciência. E isso fica claro quando Kardec, em “A Gênese”[11], assim se manifesta:
“(…) o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”. (grifo nosso)
Portanto, como se vê, o dedicado codificador da doutrina espírita, com os ensinamentos dos Espíritos, constrói um portentoso edifício, cuja obra “O Livro dos Médiuns” apresenta a sua resultante prática que serve como guia infalível para todo aquele que deseja se debruçar sobre o Espiritismo experimental, já que reúne todos os dados colhidos derivados de “uma longa experiência e conscienciosos estudos” [12].
“O Livro dos Médiuns” é divido em duas partes: a primeira trata das noções preliminares e a segunda das manifestações espíritas propriamente ditas.
No primeiro capítulo da parte primeira (“Há Espíritos?”), Kardec identifica os Espíritos como seres que compõem a realidade. A análise dos fenômenos espíritas permitiu, por método indutivo, o reconhecimento da Lei da Imortalidade da Alma e da Comunicabilidade dos Espíritos[13][14]:
“Esses fatos se nos deparam no fenômeno das manifestações espíritas, que, assim, constituem a prova patente da existência e da sobrevivência da alma”.
“(…) dos fatos que, ao nosso ver, tornam incontestável a realidade dessa comunicação (…)”
Seria impossível reconhecer o Espiritismo como ciência, caso o seu objeto de estudo, o Espírito, sequer existisse.
No capítulo seguinte (“Do maravilhoso e do sobrenatural), com vistas a desconstruir uma série de preconceitos herdados das explicações mitológicas a respeito de diversos fenômenos desconhecidos, Kardec demonstra que as manifestações mediúnicas ocorrem consoante Leis Naturais.
Reconhecemos que há, sim, algo em comum entre o mito e a ciência: ambos buscam explicar o desconhecido, sendo que o primeiro o faz por meio de algo incognoscível, inexplicável, mítico, portanto, maravilhoso e sobrenatural, e a segunda, pela conhecível aplicação do método científico.
Eis o que Kardec observa na obra[15]:
“Antes que se houvesse experimentado a força ascensional de certos gases, quem diria que uma máquina pesada, carregando muitos homens, fosse capaz de triunfar da força de atração? Aos olhos do vulgo, tal coisa não pareceria maravilhosa, diabólica? (…)
(…) do ponto de vista prático, na observação de que, tendo os fenômenos ditos espíritas dado provas de inteligência, fora da matéria havia de estar a causa que os produzia e de que, não sendo essa inteligência a dos assistentes — o que a experiência atesta — havia de lhes ser exterior. Pois que não se via o ser que atuava, necessariamente era um ser invisível.
Assim foi que, de observação em observação, se chegou ao reconhecimento de que esse ser invisível, a que deram o nome de Espírito, não é senão a alma dos que viveram corporalmente, aos quais a morte arrebatou o grosseiro invólucro visível, deixando-lhes apenas um envoltório etéreo, invisível no seu estado normal. Eis, pois, o maravilhoso e o sobrenatural reduzidos à sua mais simples expressão.” (grifo nosso)
Os materialistas que negam sistematicamente qualquer efeito extramaterial, negam, por conseguinte, a existência da alma. Porém, não o fazem por conhecimento de causa, mas por estarem presos ao ergástulo dos sistemas.
Sabiamente, no terceiro capítulo (“Do método”), Kardec traça o caminho mais seguro para o devido estudo e difusão do pensamento espírita, estabelecendo que “todo ensino metódico tem que partir do conhecido para o desconhecido. Ora, para o materialista, o conhecido é a matéria: parti, pois, da matéria e tratai, antes de tudo, fazendo que ele a observe, de convencê-lo de que há nele alguma coisa que escapa às leis da matéria. Numa palavra, antes que o torneis espírita, cuidai de torná-lo espiritualista”[16].
Do conhecido é que se constroem as premissas necessárias a conduzir os prosélitos, antes incrédulos, à mais abrangente compreensão de uma ciência nova.
Sem o condão de impor qualquer ideia a quem quer que seja, o professor Lionês analisa os tipos de incrédulos a fim de adequarmos, quando possível, os argumentos conforme a capacidade de percepção de cada um.
Bem lembra o codificador:
“Os meios de convencer variam extremamente, conforme os indivíduos. O que persuade a uns nada produz em outros; este se convenceu observando algumas manifestações materiais, aquele por efeito de comunicações inteligentes, o maior número pelo raciocínio”[17]. (grifo nosso)
O Mestre francês também classifica os que já se convenceram a respeito das lições do Espiritismo, estabelecendo os nobres fins do pensamento espírita ao identificar os verdadeiros espíritas:
“[São] os que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as consequências. Convencidos de que a existência terrena é uma prova passageira, tratam de aproveitar os seus breves instantes para avançar pela senda do progresso, única que os pode elevar na hierarquia do mundo dos Espíritos, esforçando-se por fazer o bem e coibir seus maus pendores. As relações com eles sempre oferecem segurança, porque a convicção que nutrem os preserva de pensarem praticar o mal. A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem.[18]” (grifo nosso)
“O verdadeiro espírita jamais deixará de fazer o bem. Lenir corações aflitos, consolar, acalmar desesperos, operar reformas morais, essa a sua missão. É nisso também que encontrará satisfação real”[19]. (grifo nosso)
Aderindo a modernos critérios científicos, expôs a teoria espírita a qualquer um que desejasse provar a falsidade de seus postulados, e no quatro capítulo da primeira parte (“Dos sistemas”), analisou os diversos sistemas que tentavam explicar os (extra)ordinários fenômenos que se espalhavam pelo mundo, refutando-os com argumentos sólidos e convincentes.
Suas bases científicas, como se vê, possuem diamantina solidez.
Os resultados investigativos guiados pelo seguro programa de pesquisa desenvolvido pelo insigne discípulo de Pestalozzi são apresentados na segunda parte, concernentes às descrições e orientações tão confiáveis quanto seguras para o adequado exercício da mediunidade.
Sobre os seus efeitos práticos, “O Livro dos Médiuns”, bem compreendido, nos conduz a uma percepção mais ampla da existência, permitindo-nos uma nova leitura da vida e respondendo-nos, como ciência, às inquietantes perguntas que iniciaram esse texto, quais sejam, quem somos, de onde viemos, para onde vamos e qual o sentido da vida.
As manifestações espíritas abriram portas para uma filosofia inabalável apta a desenvolver no homem um sentimento religioso. Destruindo o materialismo, essa obra monumental nos fará ver a vida por um novo prisma que nos restituirá, como diria J. J. Rosseau, Espírito, a necessidade de nos elevarmos a Deus:
“Está toda por criar-se a preocupação das questões morais. Discute-se a política, que agita os interesses gerais; discutem-se os interesses particulares; o ataque ou a defesa das personalidades apaixonam; os sistemas têm seus partidários e seus detratores. Entretanto, as verdades morais, as que são o pão da alma, o pão de vida, ficam abandonadas sob o pó que os séculos hão acumulado.
Aos olhos das multidões, todos os aperfeiçoamentos são úteis, exceto o da alma. Sua educação, sua elevação não passam de quimeras, próprias, quando muito, para ocupar os lazeres dos padres, dos poetas, das mulheres, quer como moda, quer como ensino.
Ressuscitando o espiritualismo, o Espiritismo restituirá à sociedade o surto, que a uns dará a dignidade interior; a outros, a resignação; a todos, a necessidade de se elevarem para o Ente supremo, olvidado e desconhecido pelas suas ingratas criaturas.[20]”. (grifo nosso)
Após 160 anos da primeira publicação de “O Livro dos Médiuns”, nunca foi tão necessário demonstrar ao mundo que a vida continua e que o materialismo é incapaz de dar pleno sentido à existência.
Diante dos descalabros morais que mancham a Terra de densas trevas, os mortos, de pé, tocam as trombetas e os alaúdes, dando-nos conta de que os tempos já são chegados. Somos convidados ao grande concerto dos mundos que, por meio de emigrações e imigrações, preparam o orbe terrestre para o dia novo que sucederá a madrugada espessa.
Encarnados e desencarnados, somos todos chamados, mais uma vez, a erguer o archote inapagável do Evangelho sacrossanto de Jesus que luarizará mais uma vez a humanidade em desalinho. Mediunidade é lâmpada em nossas vidas que, se não for acesa, em nada se diferencia da escuridão.
Por isso, nessas horas tão ledas quanto estremecidas, sigamos ombro a ombro, lado a lado, qual “exército que se movimenta ao receber as ordens do seu comando”, a “iluminar os caminhos e abrir os olhos aos cegos”[21].
Encarecer esta obra depuradora da inteligência e do coração neste ano de determinantes testemunhos é dever que nos compete a todos. Logo, logo, os primeiros raios da aurora nos presentearão com as belezas do arrebol. Sigamos, portanto, firmes na fé, persistindo até o fim.
Que Jesus nos abençoe.
São Luís, 20 de janeiro de 2021
O AUTOR
É Secretário da Comissão Regional Nordeste (FEB/CFN) e Diretor de Unificação da Federação Espírita do Maranhão(FEMAR)
[1] GLEISER, Marcelo. A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 1023
[2] Op. cit. P. 1028
[3] DESCARTES, René. As paixões da alma.[tradução de Newton de Macedo]. Kttk editora, 1984, p. 147
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. [tradução de Guillon Ribeiro]. 81ª ed. Brasília: FEB, 2015, p. 3
[5] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. [tradução de J. Rodrigues de Merege]. Acrópolis, pp. 19/20
[6] KARDEC, Allan. A Gênese. [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. 2ª ed. Brasília: FEB, 2013, p. 46
[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. [tradução de Guillon Ribeiro]. 93ª ed. Brasília: FEB, 2013, p. 39
[8] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. [tradução de Guillon Ribeiro]. 131ª ed. Brasília: FEB, 2013, p. 29
[9] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 44
[10] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 30
[11] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 116
[12] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 15
[13] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 26
[14] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 29
[15] KARDEC, Allan: Op. cit., pp. 34/36
[16] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 53
[17] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 62
[18] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 61
[19] KARDEC, Allan: Op. cit., p. 64
[20] KARDEC, Allan: Op. cit., pp. 731/732
[21] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. [tradução de Guillon Ribeiro]. 131ª ed. Brasília: FEB, 2013, p. 13Compartilhar